A tecnologia de inteligência artificial (IA) vem transformando diversos setores da sociedade, da educação ao entretenimento. No entanto, seu uso em contextos culturais tem gerado debates intensos, como ocorreu recentemente em Ulianópolis, no Pará. A cidade utilizou o Veo 3, uma IA da Google, para criar um vídeo promocional das festas juninas locais. A decisão gerou entusiasmo e críticas, colocando em evidência as tensões entre inovação tecnológica e representação cultural.
O Veo 3 é uma IA de última geração desenvolvida pela Google, capaz de gerar vídeos hiper-realistas a partir de prompts textuais. Além de captar movimentos, cores e expressões humanas com precisão cinematográfica, ele também simula falas, trilhas sonoras e ambientações com altíssimo grau de realismo.
A principal promessa do Veo 3 é democratizar a produção audiovisual, permitindo que mesmo cidades pequenas ou criadores individuais possam produzir conteúdo com qualidade de cinema. Contudo, como mostrou o caso de Ulianópolis, os desdobramentos culturais e éticos são mais complexos.
A experiência de Ulianópolis: inovação ou desconexão cultural?
O vídeo de Ulianópolis foi produzido inteiramente com Veo 3, apresentando cenas de danças, fogueiras, roupas típicas e personagens que pareciam reais. Porém, nenhum morador ou artista local participou das filmagens. Isso gerou forte polêmica.
Diversos internautas apontaram que o vídeo, embora tecnicamente belo, não representava a vivência da população. Comentários como “sem cheiro de milho assado” e “isso não tem nossa cara” dominaram os debates.
Outro ponto foi a omissão da origem sintética do vídeo. A prefeitura não avisou que o material havia sido gerado por IA, o que gerou sensação de engano entre os cidadãos. A ausência de um disclaimer foi considerada por muitos como quebra de confiança.
O Valor da representação: por que a presença humana importa
Para autores como Paul Rand e Rafael Cardoso, o design e a comunicação visual não são apenas funções estéticas, mas também atos simbólicos e sociais. Aplicado ao contexto de Ulianópolis, isso significa que um vídeo institucional precisa dialogar com as pessoas reais e suas histórias.
Design Social: uma abordagem integrativa
Don Norman defende que projetos de design devem gerar empatia. A falta de pessoas reais no vídeo causou um “ruído emocional”, comprometendo sua efetividade como ferramenta de engajamento comunitário.
O erro conceitual do vídeo foi tratar a cultura como decoração, e não como vivência. Ao excluir os artistas, dançarinos, moradores e artesãos locais, a peça se tornou um “souvenir digital”, bonito mas vazio.
IA no marketing cultural: desafios e oportunidades
A utilização da IA em campanhas culturais pode ser válida, desde que equilibrada com aspectos humanos e identitários. Abaixo, exploramos três caminhos possíveis.
1. Cocriação: IA Como Extensão Criativa
Em vez de substituir os profissionais locais, a IA pode potencializar suas ideias. Designers poderiam usar Veo 3 para visualizar cenas que depois seriam encenadas, ou para enriquecer efeitos visuais reais.
2. Hibridismo narrativo
Uma abordagem mais rica incluiria trechos reais com trechos sintéticos, criando um “diálogo estético” entre o humano e o artificial. Isso preserva a autenticidade sem abrir mão da inovação.
3. Transparência e credibilidade
Toda peça criada com IA deve trazer informação clara sobre sua origem. Isso é essencial não apenas pela ética, mas também para evitar reações negativas e proteger a reputação institucional.
Impactos sociais e profissionais do uso de IA
A popularização de ferramentas como o Veo 3 tem efeitos profundos na cadeia produtiva local. Por isso, é fundamental avaliar suas consequências antes de adotá-las em larga escala.
Produtores, videomakers, atores e editores locais podem perder espaço para IA. Isso compromete a economia criativa e gera desemprego em setores já fragilizados.
O acesso a tecnologias como o Veo 3 é desigual. Pequenos produtores não têm formação técnica ou acesso financeiro para competir. Assim, a IA pode ampliar desigualdades regionais.
Quando apenas “versões genéricas” de festas e trajes típicos são reproduzidas, sem pesquisa ou vivência, corre-se o risco de apagar memórias e expressões autênticas.
Recomendações estratégicas para o uso de IA na cultura
Abaixo, trago diretrizes para aplicações responsáveis da IA em projetos culturais:
Diagnóstico de Contexto
Antes de iniciar qualquer peça, mapeie os atores culturais da região. Ouça artistas, faça entrevistas e entenda o “espírito do lugar”, como diria Philip B. Meggs.
Equipes Híbridas
Inclua especialistas em IA, mas também historiadores locais, artistas e comunicadores. O resultado será mais autêntico e sensível.
Selo de Transparência Cultural
Crie um selo informando o uso de IA, a colaboração comunitária e os direitos de imagem envolvidos. Isso protege todos os lados. O caso de Ulianópolis mostra que a IA pode ser aliada poderosa, mas também um risco quando usada sem critérios. Cultura não é apenas conteúdo: é experiência coletiva. Adotar ferramentas como o Veo 3 exige olhar crítico, planejamento e compromisso com a representação honesta da diversidade humana. Em vez de substituir, a IA deve ampliar a voz das comunidades, não silenciá-las.
Dúvidas frequentes
IA pode substituir todos os produtores culturais?
Não. A IA é ferramenta, não substituto completo.
Ulianópolis foi a primeira cidade a usar IA culturalmente?
No Brasil, sim, com essa visibilidade.
O que é Veo 3?
É uma IA do Google que cria vídeos hiper-realistas a partir de texto.
Usar IA em campanhas públicas é ilegal?
Não, mas requer transparência para não ser antiético.
Como equilibrar tecnologia e tradição?
Com escuta ativa, cocriação e respeito ao contexto.